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sábado, 3 de janeiro de 2015

Retrato da realidade



Caminhando pelo centro da cidade ouvi uma senhora argumentar com um rapaz o seguinte: “Estamos próximo do dia 25 e pouco se fala do Natal”. Continuei o meu percurso, no entanto, fiquei a pensar nesta frase, e decorridos alguns minutos a memória rebobinou um fio de lembrança. Na inocência de criança, na noite que antecedia o Natal, tomava banho antes do anoitecer, vestia uma roupa nova, calçava o chinelo (muitas vezes o sapato), jantava e tão logo o dia adentrasse a noite já estava pronto para ir dormir e agasalhar o calcante em baixo da rede. “Papai Noel só vai dar presente para quem tomar banho e dormir com o calçado debaixo da rede”. Explanava a genitora que queria que os filhos fossem dormir só depois de tomar banho e que andassem sempre com os pés calçados. Eu acreditava na bondade do bom velhinho. Ansioso, deitava cedo da noite para receber o presente. Acordava na madrugada, ainda com um escuro de meter o dedo no olho, e passava a mão debaixo da rede para ver se tinha presente. O embrulho estava lá. Era uma alegria imensurável. Eu não conseguia mais dormir com tamanho contentamento e acordava os demais irmãos para compartilhar a felicidade.
O que mais ganhei de presente de Natal foi bola. Todas de borracha, aquelas mesmo bem comuns. Logo que o dia raiava eu corria na casa da minha avó que ficava a alguns metros para contar o que tinha ganhado e chegado em disparada falava: vovó, Papai Noel mim deu uma bola, no ano passado ele também mim deu uma bola. Minha avó retrucava: “Pois ele quer que você seja um jogador de futebol, te deu outra bola”. Ouvindo essas palavras eu colocava a bola no chão ainda dentro da casa e saia chutando e correndo atrás. Diante de tanta empolgação, meus irmãos mais velhos começaram a revelar o segredo afirmando que não era o velho de barda longa, vestido de roupa vermelha e que andava com um saco cheio de brinquedos quem colocava os volumes debaixo da rede, e que tudo era uma farsa. Não acreditei. Revidei aquele insulto. Eu não podia ouvir expressões com tamanha barbaridade de um senhor que andava distribuindo presentes para as crianças na calada da noite.        
Tempo depois, os presentes cessaram. Já grandinho e abandonado pela infância, descobrir que era minha mãe, minha avó e minha tia as autoras de tanta felicidade a este “menino que ainda existe”. O tempo muda e os valores pouco a pouco vão se perdendo. A relação das crianças com o Papai Noel não tem mais o mesmo significado que tinha outrora. O advento da tecnologia adentrou nas casas e emancipou a infância da molecada. As liturgias feitas em vésperas de datas significativas evadem-se a passos largos. As manifestações como as festas do Natal, Reisado, dança de São Gonçalo, Semana Santa, dentre outras, com o passar do tempo estar desmerecendo o sentido no quesito o qual era tão celebrado. As datas típicas marcadas no calendário, que são dignas de comemorações pelas suas passagens e marcadas com muita apreciação até então, perdem-se no tempo. Resgatando o retrato da realidade para o momento inerente, pouco se ouve falar e/ou praticar o ritual de algumas culturas que em um passado próximo eram festejados na sua essência. Eu faço a minha parte, faça a sua. Cultura é identidade.      

(*) JOSSELMO BATISTA NERES
E-mail: josselmo@hotmail.com


Crônica publicada no Jornal Diário do Povo do Piauí em 28/12/2014 na página 02 - Opinião (Jornal Impresso).
Pode também ser conferido na íntegra na Edição Eletrônica no endereço abaixo:

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